Criminalizar uniões prematuras é proteger a saúde da rapariga

Monday 5 August 2019

“Os casamentos prematuros são uma grosseira violação dos direitos humanos da rapariga. Colocam a rapariga numa situação de vulnerabilidade, limitam os sonhos das crianças e promovem desigualdades de género em Moçambique. O meu Governo reafirma o seu compromisso no combate aos casamentos prematuros. Contudo, combater este fenómeno não é tarefa exclusiva do Governo, mas de toda sociedade. Todos devemos assumir que as meninas não são mulheres e que, tal como rapazes, elas têm o direito de crescer de forma saudável e decidir, de forma livre e consciente, quando, com quem casar e quantos filhos ter”, Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República de Moçambique.  

No passado dia 18 de Julho, o Parlamento aprovou, na especialidade, a Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras. O instrumento jurídico sanciona com penas que podem ir até 12 anos de prisão para o adulto que se unir ou casar com uma menor de 18 anos de idade.

O novo dispositivo legal condena também com pena até oito anos de prisão, o familiar que obrigue a criança a aceitar a união.

A Lei resulta de um Anteprojecto submetido ao Parlamento por cerca de 55 organizações da sociedade civil que integram a Coligação para a Eliminação dos Casamentos Prematuros (CECAP).

A aprovação do instrumento acontece numa altura em que Moçambique regista taxas elevadas de uniões prematuras no mundo.

Contudo, para a Lei entrar em vigor, precisa de ser promulgada pelo chefe de Estado e publicada no Boletim da República. Espera-se que o comprometimento e a preocupação do estadista moçambicano com a problemática dos casamentos prematuros flexibilize a promulgação da mesma.

Enquanto o instrumento que criminaliza uniões prematuras não entra em vigor, a saúde de milhares de raparigas continua em risco. 

A gravidez na adolescência representa riscos graves para a saúde da rapariga tais como: pré-eclampsia, tensão alta, parto prematuro ou prolongado, fístula obstétrica, morte do bebé ou da mãe devido a complicações de parto ou de anemia para além de desnutrição crónica.

As crianças nascidas de mães muito jovens também correm mais riscos de morte antes de atingirem um ano.

Uma das grandes consequências das uniões prematuras na saúde pública é a problemática das fístulas obstétricas.

Dados do Ministério da Saúde indicam que os serviços de saúde cobrem apenas 500 das 2.500 mulheres e raparigas anualmente afectadas pela fístula obstétrica em Moçambique.

E uma rurpta no canal vaginal que causa incontinência, ou seja, causa a libertação constante, sem controlo, da urina e noutros casos, de fezes. As suas principais causas são partos prolongados e obstruídos, gravidez na adolescência, práticas tradicionais prejudiciais e falta de acesso pelas raparigas e mulheres a serviços de saúde sexual e reprodutiva de rotina e a cuidados obstétricos de emergência.

Segundo o coordenador do Programa Nacional de Fistulas Obstétricas em Moçambique, Armando Melo, as províncias onde há mais vítimas desta enfermidade são Nampula, Zambézia, Niassa, Manica, Tete e Inhambane.

Em África, Moçambique tem a segunda maior taxa de prevalência e cerca da metade, dos 2.500 casos registados anualmente, acomete jovens com idades compreendidas entre 15 e 24 anos.

Num artigo publicado no boletim informativo da Women and Law in Southern África Research and Education Trust (WLSA – Moçambique), intitulado: A fístula obstétrica e a situação em Moçambique, o Urologista Igor Vaz explica que a maioria das mulheres desenvolvem fístulas na sua primeira gravidez, numa idade muito jovem e em culturas em que a mulher é encaminhada para o casamento ainda na fase púbere e “o ser mãe” é um indicador de acesso ao estatuto de mulher casada e adulta. Na sequência perdem a criança durante o trabalho de parto, algumas acabam mesmo por sucumbir às complicações de parto e as que sobrevivem saem traumatizadas física e psicologicamente.

 

Isabel Macuácua e Rita Mahocha: as caras dum sofrimento duplo 

O nascimento de uma criança é, no geral, um momento de alegria para qualquer família. É sinónimo de alargamento da família e da preservação da espécie humana. Infelizmente, o mesmo já não pode ser testemunhado por Isabel Valdemiro Macuácua, natural de Lucilo, Posto Administrativo de Chissano, distrito de Limpopo, província de Gaza. Casou-se aos 16 anos de idade com um homem de 46 anos. Hoje, com 32 anos, Macuácua perdeu a escola, o marido, o bebé e a própria saúde.

Engravidou aos 16 anos quando frequentava a nona classe na Escola Secundária de Chibuto. Grávida, Macuácua foi obrigada a abandonar a escola e a casa dos pais para viver com o marido no Posto Administrativo de Chicumbane.   

O parto de Isabel não correu conforme o previsto. Perdeu o bebé e contraiu a fístula obstétrica.

“É difícil viver com este problema. Poucas pessoas me toleram. Sou rejeitada devido ao mau cheiro que por vezes liberto, uma vez que passo todo o tempo a tirar urina e às vezes fezes”, conta a nossa entrevistada.

Casou prematuramente, engravidou precocemente, foi expulsa da casa dos pais, perdeu a escola, oportunidades de concretizar seus sonhos, lar, bebé, marido e está com saúde frágil.       

Conta que depois de contrair a fístula o marido levou-a a casa dos seus pais no Posto Administrativo de Maqueze, distrito de Chibuto, para tratamento tradicional. “O meu marido não se conformou com a situação, suspeitou que era obra de superstição. Abandonámos o tratamento hospitalar e fomos à terra natal do meu esposo onde fui internada em casa duma curandeira no Chibuto. Esta garantiu ao meu marido que eu tinha problemas espirituais e que ela iria resolver. Porém, em vez de melhorar, a situação piorava. A partir dum certo momento, a curandeira mandou-me de volta a casa, sob alegação de que devia fazer o tratamento ambulatório”, explica.

Sublinha que permaneceu um mês internada e o marido pagou cerca de 25 mil meticais.

Como não registava melhorias, o conselho familiar foi de que devia mudar de curandeiro. Foi o que sucedeu, mas nunca havia sucesso, até que, um dia, a irmã visitou-a e aconselhou a retomar o tratamento hospital.

Recebeu a clemência dos pais e retornou a casa onde reiniciou com o tratamento.

Explica que o marido se aproveitou do seu regresso a casa dos pais para abandoná-la e juntar-se a outra mulher.

Isabel Macuácua diz que está à espera duma cirurgia há mais de dois anos.                

“Esta doença faz-me sofrer bastante porque vivo constantemente molhada, com mau cheiro e isolada dos outros membros da comunidade. O meu marido abandonou-me e não consigo ter outro homem ou marido”, conta a jovem que depositava muita esperança na cirurgia que devia ter-se realizado em Janeiro, mas que depois foi adiada para o próximo mês de Outubro. 

A dor e o desespero de Isabel Macuácua levam-na a ficar longe dos órgãos de comunicação social de tal forma que não sabia que o parlamento aprovou uma lei que criminaliza os promotores das uniões prematuras.

 

Conta que a lei é oportuna porque as uniões prematuras estão a prejudicar o futuro de muitas raparigas.

“Eu sou o exemplo dessa desgraça porque no período em que fui ao lar, se a lei existisse, de certeza que o meu marido não teria tido coragem de se envolver comigo. Continuaria com os meus estudos e talvez não tivesse contraído esta grave doença”, desabafou.        

O caso da Rita Mahocha

Rita Mahocha, tem 19 anos e também vive em Gaza, onde há quatro anos teve complicações no parto. Nasceram os seus gémeos. A partir daí a sua vida mudou: Alegre por ser mãe e triste por passar a ser uma companhia não desejada por muitos.

As complicações no parto resultaram numa fístula obstétrica, que impede-a de controlar as suas necessidades biológicas.

Rita passou a fazer parte de uma triste estatística. Há de mais de duas mil mulheres moçambicanas que, anualmente, contraem a lesão que causa enorme sofrimento e estigma social.

Neste momento, Rita Mahocha está na fila para a cirurgia de tratamento da fístula obstétrica no Hospital Central de Maputo.  Conta que esteve internada por um mês e precisou de sangue, uma vez que além de fístula tinha anemia. Sem marido e com dois filhos menores, Rita vive sob cuidado dos pais. 

 

Este artigo é da autoria da CECAP – Coligação para a Eliminação dos Casamentos Prematuros. A CECAP é composta pelas seguintes organizações:

ROSC, ACABE, Action Aid Moçambique, ADDC, AIRDES, ASCHA, MULEIDE, AMMCJ, Associação Solidariedade Zambézia (ASZ), Associação Wona Sanana, CESC, Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UEM, Comunidade Moçambicana de Ajuda (CMA), Coalizão da Juventude Moçambicana, COREM, Fanelo ya Mina, Fundação Apoio Amigo (FAA), FDC, Fórum Mulher, FORCOM, Girl Move Foundation, HACI, REPSSI, LeMusica, LDC, Linha Fala Criança, MEPT, WLSA, N’weti, Plan International, Pathfinder International, RECAC, Rede da Criança, Rede HOPEM, Save the Children, SOPROC, Terre des Hommes Itália, Terre des Hommes Schweiz, VSO, World Vision Moçambique, Young Women Christian Association, Associação Jovem para Jovem (AJPJ), AMODEFA, AGCD, Associação Progresso, REPROCRINA, UATAF-AFC, ChildFund, FHI360, Malhalhe, Nova Vida, AMPARAR, Right to Play, H2n